domingo, 7 de junho de 2009

A morte dos outros



Se de uma divindade qualquer me fosse concedida a chance de fazer um único pedido, não seria um pedido para a vida, mas para a morte. Eu escolheria como morrer, aliás, como não morrer: eu pediria que dentre as infinitas formas possíveis de encontrar a morte, eu fosse poupado unicamente de ser buscado por ela em um acidente de avião.
Todos sabemos que vamos morrer, mas o que torna suportável a nossa finitude é ela ser indeterminada: não sabemos quando vamos morrer, por isso podemos esquecer que morreremos, e a morte torna-se para nós uma verdade encoberta. Uma verdade assim, velada, é como uma doença indolor; abstrata, longínqua, ainda que dentro de nós mesmos, ainda que nossa mais íntima e única certeza.
Por isso durante muito tempo atemorizava-me a possibilidade de um dia ser desenganado por uma doença incurável e receber a notícia de estar com os dias contados. A morte então tornar-se-ia uma verdade aberta, escancarada, inadiável. São os últimos dias de um condenado, a espera da execução, Sócrates aguardando a cicuta. Com que pavor imaginei tantas vezes essa possibilidade.
Mas diante da morte em um acidente aéreo, chego quase a desejar esse desengano, como Borges pôde desejar a finitude ao imaginar a ideia da imortalidade. Sim, porque, apesar de nos lançar diante da verdade aberta da finitude, a morte por doença incurável ainda nos permite lutar, ainda nos dá a chance de afirmar a vida contra o inelutável, de desmentir a medicina, de gritar, de chorar, de amar sabendo que tudo está prestes a acabar. Será um final de vida sublime, épico. E a doença será a minha doença, no meu corpo, inimiga íntima, que eu conhecerei intimamente, no tempo que ainda me for dado conhecer.
Não temo essa morte. Não a temeu, recentemente, o grande filósofo norte-americano Richard Rorty, que, desenganado por um câncer inoperável no pâncreas, lamentou apenas não ter lido mais poesia em sua vida. Sua última palavra foi uma afirmação da vida por meio da poesia, da poesia que afirma a vida, incluindo nela a sua finitude. Assim declara o poema de Swinburn (em tradução de Antonio Cícero): "Agradecemos brevemente/A todos os deuses que há/Por não se viver para sempre;/Por jamais os mortos se erguerem;/Por chegar, por mais que volteie,/O rio sem dúvida ao mar".
A morte em um acidente de avião é a pior entre todas possíveis. É uma aberração do destino, uma morte inumana inventada pelo que no homem há de mais humano. É inumana porque ela, como nenhuma outra, aliena o homem de sua própria morte. É uma morte impessoal, estatística, sem endereço, sem intimidade. E também sem luta, sem drama, sem adversário, sem épico. E ainda sem esquecimento, sem doçura, sem morfina. Finalmente, sem sentido.
Deus, em quem não creio, queira que eu não morra num avião. A menos que um dia, numa outra vida em que também não creio, eu me torne um piloto, e desafie a máquina, os ventos e as nuvens, e por eles seja castigado como Tâmiris por seu orgulho. Pelo menos será a minha morte, provocada por mim, e eu brigarei contra a máquina, e por pelo menos um segundo saberei por que morri.
Não tenho medo do ar, da altura vertiginosa, do céu. Seria uma morte gloriosa a do inventor do avião, morto por seus próprios cálculos, devido a uma condição atmosférica qualquer que não pôde prever. Morreria em sua máquina, em seu céu, em sua morte. Morte bela a do piloto de asa-delta tragado para o infinito pelas sereias aéreas. Gloriosa a morte de Ícaro.
Deus queira que eu morra de todo jeito. Nem peço a mais desejada de todas as gentes, a morte no sono, entrando no meu quarto em negras pantufas e fazendo-me acordar sem sustos na eternidade que não há. Não. Que eu morra no mar, num passeio de veleiro, emboscado por uma tempestade; e lutarei contra as ondas, serei um homem contra a natureza, valer-me-ei de meus braços e pulmões - e a ninguém poderei culpar se eles não me valerem. Que eu morra em um assalto, pelas mãos de um homem, que não me enfiará uma bala na testa sem que eu lhe quebre ao menos um par de dentes. Não tenho medo de bala. Já levei um tiro, e em meus pesadelos muitas vezes fui baleado na cara.
Deus não permita que eu morra em um avião. Um Airbus que não sei quem construiu, não sei quem nomeou, não sei quem abasteceu, não sei quem pilotou. Sentado espremido no meio de centenas de pessoas que eu não sei quem são. Emboscado por um céu que não sei qual é. Emboscado por uma emboscada que não saberei qual é. E que não terá rosto. E que nem mesmo tocará a minha pele. Que me matará sem me conhecer. E não poderei lutar. E de nada valerá a força de meu corpo. Nem minha força moral. Nem toda a minha história. E assim não serei um homem. E mal terei tempo de pensar no meu amor. E morrerei assim sem sentido. E ter-me-ão roubado a única coisa que sempre tive: meu rosto sairá nos jornais, junto aos rostos dos demais, e minha morte será apenas dos outros.

Francisco Bosco é ensaísta e letrista. O acima acima foi publicado, hoje, em O GLOBO


Ricardo Noblat


5 comentários:

Angela Natel disse...

Somos escravizados pelo medo da morte. Todos os temores, as rejeições, as ilusões, as dores giram em torno do medo da morte da razão, da morte dos sentimentos, da morte física, da morte espiritual, da morte social, da morte, enfim. A verdadeira liberdade é viver sem medo da morte - a imortalidade.

Coringa Nine disse...

Poltz...adorei......

já add vc no meu blog..qualquer coisa conta comigo!

JAIRCLOPES disse...

A MORTE É ETERNA
Fevereiro 4th, 2007 by jairclopes
A morte é o único evento absolutamente inevitável e que alcança a totalidade dos seres vivos, mas nós, ocidentais de cultura judaico-cristã, não temos familiaridade com ela; não consta no curso do dia-a-dia de nossas vidas quaisquer práticas, cultos ou ritos que visem enquadrá-la num entendimento racional. Temos pavor dela e tentamos ignorá-la como se não existisse, como se fôssemos viver para sempre. Claro que essa atitude pode ser explicada pelo terror que alguma coisa tão definitiva e irrefragável causa a mentes pensantes, cujo funcionamento só é possível enquanto vida houver. Exatamente por essa inevitabilidade e perenidade, a nossa cultura criou mecanismo para, pelo menos, torná-la menos funesta, menos fatal, por assim dizer: a vida eterna. A vida eterna, o paraíso, o purgatório e o inferno são criações abstratas que têm a finalidade de substituir o negror do ignoto depois da vida, pela expectativa de alguma coisa sobre a qual podemos ter algum controle, ou seja, se formos “bons” em vida seremos recompensados com o paraíso, se, não, as outras alternativas nos esperam, mas, pelo menos, nos livramos da irrevogabilidade e, em conseqüência, do terror que nos apavora. Já o agnosticismo prefere apostar na criogenia, tornando a possibilidade de uma segunda (ou terceira, ou quarta etc.) vida sua esperança de vencer a morte. Contudo, a única verdade verdadeira é que a morte é eterna, todos morremos e, se serve de consolo, a matéria da qual somos feitos, depois que nos decompomos, servirá para compor outros seres que, de certa maneira, nos eternizam e a todos aqueles que nos antecederam. JAIR, Floripa, 02/02/08.

Unknown disse...

A Morte é um evento totalmente desconhecido para o homem..

certa vez eu li que niguem sonha com a morte, porque o homem não tem idéia de como seja, por isso o subconciente(ativo durante o sono) não tem como produzir tal sensação.. Achei bem Intessante, reqalmente sempe acordo no momento clímax da morte..

Adorei o Blog e a Partir de Hoje seguirei..

beijinho ;*

Jose Ramon Santana Vazquez disse...

Desde mis --- HORAS ROTAS ---

y --- AULA DE PAZ ----

TE SIGO . DEDO DE PROSA






comparto tu blog

con un fuerte abrazo y

Saludos cordiales de amistad:




afectuosamente :
DEDO DE PROSA





jose

ramon…